sábado, 17 de outubro de 2009

um conto de voltaire, só pra nada!

Ando numa falta de criatividade sem limites.
Não há motivos, só ando assim.
Estou lendo um livro bom, colocar um trecho dele aqui me ajuda
a pensar que não abandonei esse meu Bloco de Folhas!
_______________________



O Nariz

Um dia, Azora (mulher de Zadig) voltou de um passeio irada e proferindo grandes exclamações: "Que tem você, cara esposa? - perguntou ele. - Por que está tão fora de si? - Ah! - disse ela. - Você estaria como eu, se tivesse visto o espetáculo que acabo de presenciar. Fui consolar a jovem viúva Cosru, que acaba de construir, faz dois dias, o túmulo de seu jovem esposo, perto de um riacho que cruza esta campina. Ela havia prometido aos deuses, em sua dor, ficar ao pé do túmulo enquanto o riacho corresse por ali. - Ah! - disse Zadig. - Eis aí uma mulher de valor, que amava verdadeiramente o marido! - Ah! - retrucou Azora. - Se soubesse o que ela fazia quando cheguei! - O que era, Azora? - Desviava o curso do riacho." Azora se expandiu em invectivas tão prolongadas, explodiu em censuras tão violentas contra a jovem viúva, que essa ostentação de virtude desagradou a Zadig.

Ele tinha um amigo, chamado Cador, que era um dos rapazes em que sua mulher achava mais honestidade e mérito que nos outros: Zadig resolveu confiar nele, assegurando na medida do possível sua lealdade por meio de um respeitável presente. Azora, depois de passar dois dias com uma amiga no campo, voltou para casa no terceiro. Criados em prantos lhe anunciaram que o marido morrera de repente aquela noite, que não haviam tido coragem de lhe levar a funesta notícia, e que acabavam de sepultar Zadig no túmulo de seus pais, no fundo do jardim. À noite, Cador pediu para ser recebido e ambos choraram. No dia seguinte, choraram menos e jantaram juntos. Cador confiou-lhe que o amigo lhe havia deixado a maior parte dos bens, e deu a entender que ficaria feliz se partilhasse com ela essa fortuna. A dama chorou, zangou-se, enterneceu-se; a ceia foi mais longa que o jantar; falaram com mais confiança. Azora fez o elogio do defunto; mas reconheceu nele defeitos que Cador não tinha.

Em plena ceia, Cador se queixou de violenta dor no baço; a dama, inquieta e precipitada, mandou trazer todas as essencias com que se perfumava, a fim de ver se havia uma boa para dor de baço; lamentou muito que o grande Hermes não estivesse mais na Babilônia; dignou-se mesmo a tocar o lado onde Cador sentia dores tão vivas: "Você é sujeito a essa cruel doença? - perguntou ela compassiva. - Vez por outra ela me leva à beira do túmulo - respondeu Cador - e só existe um remédio capaz de me aliviar: é aplicar-me do lado o nariz de um homem morto na véspera. - Que remédio esquisito - observou Azora. - Não é mais esquisito - replicou ele - que os saquinhos do Sr. Arnu contra apoplexi." Esta razão, acrescida do singular mérito do rapaz, terminaram decidindo a dama. "Afinal - disse ela - quando meu marido passar do mundo de ontem para o mundo de amanhã, acaso o anjo Asrael lhe barrará a passagem por que o nariz dele está mais curto na segunda vida que na primeira?" Apanhou, pois, a navalha; foi ao túmulo do esposo, regou-o com suas lágrimas e se aproximou para cortar o nariz de Zadig, que encontrou estendido na cova. Zadig se levanta, segurando o nariz com uma das mãos, e detendo a navalha com a outra. "Minha senhora - disse ele - não deblatere tanto contra a jovem Cosru; o projeto de me cortar o nariz deixa atrás o de desviar o riacho."
Conto de Voltaire, que
faz parte duma saga, chamada
Zadig (ou O Destino) de 1747,
dedicado à Mme. de Pompadour
.

Nenhum comentário: